É doce viver no mar
* Tuim *

"Se não plantei nada, como reclamar quando não vem peixe na rede?" (pescador Benoní)

Agostinho, Amadeo, Benoní, Lengo e Zé

Benoní chega na madrugada ainda escura. Bermudas, camisa sem mangas, boné do Vasco, prepara o material para mais um dia de trabalho, ou melhor, um dia de arrastão na Praia João Fernandinho. Seus velhos companheiros aparecem logo depois: Amadeo, Agostinho, Enéas, Lengo.

Canoas ao mar, redes embarcadas, começa o ritual da pesca de arrastão: Benoní, espreita na areia, olhando para o mar, ao lado do croata Amadeo e Enéas, também na "botuca"; no alto de um morrinho, Zé Carlos e Márcio, mais jovens, olhos atentos na entrada da enseada; embarcados, Enéas e Lengo. Amanhece lentamente, o mar está calmo, uma brisa sopra e Benoní Antônio de Souza, espera pacientemente os peixes e conta um pouco dos seus 65 anos de vida...

Nascido na Praia dos Ossos, passou a infância ajudando o pai Manoel Aurélio da Costa na pesca e mal teve tempo de aprender a ler com a única professora da cidade, DONA CHICA. Com a morte do pai aos 40 anos, teve que sair da escola e trabalhar duro para ajudar a mãe Irene a criar os onze irmãos (o pescador Jacaré é um deles). Embarcou no "Cruzeiro", na Praça 15, no Rio de Janeiro, mas ficou só seis meses como pescador de mar alto. Conseguiu emprego de consertador de redes na colônia de pescadores da Ilha da Conceição (Niterói), indo-e-vindo para Búzios freqüentemente.

- É bonito ? É bonito? - interrompe sua história gritando para os companheiros do alto do morrinho para confirmar a entrada de um cardume de bonito na enseada. Todos se alvoroçam e Enéas, entusiasmado, sai com a outra canoa. Era rebate falso e a história continua... Pescador da antiga muito respeitado em Búzios, Benoní casou-se com Jacira , teve onze filhos e passou a viver do conserto das redes e da pesca, nas praias João Fernandinho e Rasa, outro núcleo de pescadores buzianos.

Aliás foi da Rasa que saiu mar adentro centenas de vezes na sua canoa "Lembrança" (comprou do tio Fanor), barco centenário e hoje histórico, construído em Barra de São João, peça maciça de Jequitibá, nove metros de comprimento que exigia no remo, quatro dos seus oito tripulantes. (A canoa, hoje apodrecendo nas areias da Rasa, foi doada por ele para ser restaurada e colocada no Museu Histórico e Marítimo de Armação dos Búzios).

a Lembrança irá para o museu

-Olha o espada! Atenção, cuidado com a pedra! Puxa, puxa o cabo! Aos gritos, Benoní vai orientando Agostinho, Lengo e Enéas que, embarcados, vão lançando a rede ao mar, fechando o cerco a um cardume imaginário que pressentiu chegar à beira-mar.

A ponta da corda que fica na areia começa a ser puxada sob a liderança de Amadeo Agosto, um croata-italiano de 64 anos, nascido na cidade de Fasana, província de Pula, onde foi também pescador profissional até os 21 anos (1958), quando decidiu emigrar para o Rio de Janeiro.

Forte como um lutador de luta-livre, Amadeo interrompe também sua história e puxa para valer a corda, arrastando literalmente a rede para a areia. São 6h25 da manhã, começa a clarear, a rede é recolhida sobre a areia com apenas um peixe: um cangulo com cara de porco. Todos ficam decepcionados e Benoní, do alto da sua experiência filosofa e consola seus companheiros: - se não plantei nada, como reclamar quando não vem peixe na rede?

Amadeo é croata
Agostinho, tio do prefeito

Falastrão, Amadeo emenda: - ainda é cedo, temos muitas puxadas pela frente - diz otimista. Sotaque italiano, aproveita o descanso do arrastão frustrado para contar que no Rio de Janeiro fez de tudo na construção civil até se aposentar pelo INSS e descobrir a cidade de Búzios para viver. Viúvo do primeiro casamento, casou-se com uma brasileira com quem tem quatro filhos.

O sol começa a aparecer, surgem as primeiras gaivotas que pousam na areia em busca de alimento, uma delas sem a pata direita: - deve ter sido decepada por baiacu que morde como se fosse alicate. As gaivotas e atobás ajudam muito os pescadores, porque é indício de que tem manjuba ou sardinha na área - ensina o experiente Benoní que "já pescou um cação azul que limpo pesou 276 kg".

A conversa vai envolvendo os pescadores que, no intervalo de cada puxada do arrastão com alguns xereletes, bonitos e enchovas, vão lembrando histórias de mar: Agostinho de Almeida Braga, 64 anos, tio do Prefeito Mirinho Braga e filho do velho pescador RAFAEL BRAGA, também foi pescador embarcado na Praça 15 e já pescou anequim (tubarão) de 120 kg; Enéas de Souza Alves, 64 anos, amigo de Benoní desde os 20 anos, já viu muitas baleias embarcado no Sagres, Cruzeiro, Glória do Outeiro e Juventude, todos do entreposto da Praça 15, no Rio.

A pesca de arrastão em Búzios ocorria nas Praias da Armação, Ossos, Canto, Azeda e João Fernandinho, mas agora é mais freqüente só nesta última por insistência de Benoní já que, vez por outra, as autoridades ensaiam regulamentação para não prejudicar o turismo local. "Ora, não deveria ser o contrário? A tradição da pesca de arrastão não é também uma atração turística que deveria ser preservada?" - argumentam os pescadores.


Sabedores que mais-dia-menos-dia serão proibidos de pescar na praia, Benoní e companheiros insistem na tradição buziana da pesca de arrastão em João Fernandinho e para curtí-los e ajudá-los a puxar a rede, basta chegar à praia às 6h da manhã, ter paciência de pescador e se lembrar da frase de Benoní:


"Se não plantei nada, como reclamar quando não vem peixe na rede?"